O mecanismo é recorrente e nos envolve. A opinião publicada estabelece de tempos em tempos algumas “verdades definitivas”. Misteriosamente, analistas e acadêmicos vão convergindo argumentos, encaixando fatos e orientando raciocínios que desembocam sempre nas mesmas conclusões. E, aí, as conclusões viram premissas, que servem de fermento para artigos ou discursos indignados, que passam a se justificar pela indignação – e não pela lógica. A superficialidade hiperbólica travestida de sabedoria impera.
O Brasil desenvolveu o condão de gerar especialistas a partir das necessidades de opiniões sobre fatos. É a “futebolização” opinativa: chute para todo lado! Tem uma Constituinte? Aparecem centenas de especialistas para falar o tema. Falta água? Tem desde Phd em recursos hídricos até caciques que atraem tempestades dando palpites. Foi divulgada uma pesquisa? Lá vêm as interpretações estapafúrdias: óbvias, enviesadas, preditivas… Se a aprovação do governo cai, não há dúvida: alguém tem uma explicação cabal, cuja força de convencimento deriva muito mais da criatividade semântica do que de qualquer sofisticação argumentativa.
Dentre essas “verdades definitivas” está a ideia de que nosso sistema político – e tudo que a ele se associa – é ruim, quando não catastrófico. Esse fenômeno se fortalece em tempos de crise. Normalmente, quando um governo vai bem – casos do primeiro mandato FHC ou segunda administração Lula – pouca atenção se dá ao assunto. Quando a situação piora, entretanto, cria-se uma força avassaladora que gera uma corrente de irracionalidade interpretativa contra a qual é dificílimo se insurgir.
Tome-se uma questão apaixonante: o futebol. É notável como uma seleção – e tudo que a cerca: dirigentes, clubes, técnico, jogadores, federações, confederações etc. – pode passar do céu ao inferno com uma rapidez impressionante. O que é bom ou imperceptível pode virar o belzebu do momento. É como se a qualidade da estrutura variasse ao sabor dos resultados que aufere, e não das suas virtudes ou defeitos intrínsecos.
Quando a indignação ou a paixão desorientada inspira a tese, quem sofre é a razão analítica. O Poder Executivo no Brasil é hipertrofiado, o governo pauta e orienta o Legislativo, que deveria fiscalizar o Executivo e não o faz. A soberania popular não é exercida de fato. O Judiciário, por sua vez, é ineficaz e favorece aqueles que têm mais condições financeiras de contratar profissionais tecnicamente qualificados. No nosso país, os ricos não são punidos.
Veja a naturalidade como essas frases fluem. É como se o leitor se sentisse protagonista da desilusão. No entanto, recentemente um presidente da República sofreu “impeachment” em cinco meses sem grandes abalos e, depois disso, o Congresso tem protagonizado CPIs históricas. Seguidas eleições livres e inclusivas reafirmam a vontade do povo. Manifestações populares de grande amplitude reorientam as ações da elite dirigente. Políticos e empresários poderosíssimos que saem da linha estão na cadeia. Se tudo isso não é demonstração inequívoca e elogiável de uma invejável vitalidade institucional, o que seria?
As sociedades se alimentam de insatisfação explicitada, mas não evoluem a partir da desesperança. Por perseguir o aperfeiçoamento institucional, temos uma eleição informatizada que é referência mundial, a Lei da Ficha Limpa, liberdade de expressão, Justiça punindo poderosos, uma sociedade atuante, sofisticada teia de meios de comunicação e muitas outras qualidades. As imperfeições também existem e estamos longe de viver o melhor dos mundos, é verdade. Mas estamos a léguas de nos situar na rabeira da humanidade.