A política sem políticos

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A política sem políticos

Existe algo contraditório no processo que permitiu o afastamento da presidente Dilma e a transição para o governo interino de Michel Temer. Houve recentemente uma aproximação vigorosa da política, com uma intensa manifestação de opiniões e vontades, nas ruas e nas redes sociais. Mas, ao mesmo tempo, observou-se um distanciamento da política, uma verdadeira repulsa a tudo aquilo que representasse o “status quo”. Nas manifestações de junho de 2013, quem aparecesse com uma bandeira de um partido corria o sério risco de ser trucidado.

Também os manifestantes que foram às ruas defender o impeachment de Dilma e a defenestração do PT estavam, ao mesmo tempo, profundamente desconfiados da política, dos políticos, dos partidos e do Congresso. É como se a política pudesse ser feita sem políticos, e a sociedade, no melhor estilo anarquista, fosse capaz de encontrar formas espontâneas de organização que prescindissem da mediação política.

Outra contradição: é difícil discordar de que o Brasil vive um período de esplendor democrático. A população sai às ruas sem a liderança das instituições tradicionais  para demonstrar sua insatisfação, que é canalizada para partidos e refletida no Congresso. Com cobertura total da imprensa e a aprovação ágil das instâncias judiciais pertinentes, o impeachment previsto na Constituição, por sua vez elaborada por deputados e senadores eleitos pelo povo, é aprovado. A passagem de poder se dá sem maiores traumas.

No entanto, esta parcela ponderável da opinião pública, que conseguiu o que queria pela via democrática, não aprova a democracia que viabilizou a proeza. Pesquisa realizada pelo Ibope em abril desse ano mostrou que nada menos do que 83% dos brasileiros estão pouco ou nada satisfeitos com o sistema democrático, o maior índice desde 2008, ano em que essa pergunta começou a ser feita. É mais ou menos como o doente se rebelar contra o médico que o curou.

Na montagem do governo, essa falta de sintonia entre a sociedade e a política também se manifestou. É evidente que o país necessita de reformas e, para que as reformas aconteçam, a montagem de uma expressiva coalizão parlamentar é imprescindível. Entretanto, foi notória a reação negativa dos meios de comunicação quanto aos ministros que representam forças políticas vigorosas mas que, por assim dizer, são “políticos demais” para que se tenha o necessário “good will” dos formadores de opinião.

Nesse sentido, a chiadeira imperou. Ora porque, ao contrário do que se esperava, não se montou um ministério de notáveis, como se a notoriedade engendrasse automaticamente competência administrativa e capacidade gerencial. Ou ainda porque setores da sociedade – mulheres, negros, deficientes, classe artística, etc – não tivessem sido chamados, na ingênua presunção de que os aspectos simbólicos fossem, neste momento, mais importantes do que os valores representativos, que geram votos no Congresso e podem permitir que as reformas fluam e o Brasil avance.

É claro que temos, como pano de fundo de tudo isso, a monumental exposição de práticas não republicanas que, certamente, contamina a avaliação da democracia e da classe política como um todo. Mas, do mesmo jeito que não existe futebol sem jogadores de futebol, medicina sem médicos e atletismo sem atletas, não existe política sem políticos. Analisar a realidade do país na base do “ninguém presta” ou resumir as barbaridades que vêm sendo denunciadas com um confortável “é assim mesmo” não nos levarão a lugar nenhum. Política e democracia dão trabalho, demandam cuidado e são um movimento permanente de construção. Desprezá-las não está entre as atitudes mais inteligentes.

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