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Capitalismo de araque

No Brasil, o capitalismo sempre foi muito mal visto pela opinião pública. Esse é o resultado que aparece nas pesquisas, cujas amostras são formadas majoritariamente por cidadãos de baixa renda, escolaridade e nível de informação. Os “surveys” mostram que, quanto menos escolarizado o entrevistado, menos adepto ao capitalismo ele é. E mais aceita, quando não valoriza, a intervenção do Estado. O brasileiro, em geral, não vê com bons olhos a competição como motor da sociedade, os grandes empresários e o lucro.

Por que isso acontece é uma questão que enseja grande discussão. Um dos nossos ensaístas mais argutos, Sérgio Buarque de Holanda, fez a distinção clássica entre o conquistador trabalhador e o aventureiro no seu clássico livro Raízes do Brasil (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1969). Entre nós, afirma, teria predominado o “ethos” aventureiro. Diz Buarque de Holanda que a exploração dos trópicos “não aconteceu por um empreendimento metódico e racional, não emanou uma vontade construtora e enérgica: fez-se, antes, com desleixo e certo abandono”. O aventureiro acha trabalhar um desconforto, o êxito virá por esperteza, sorte ou com alguma ligação próxima com o rei.

Nossa tradição estatista e estatizante também não ajuda. Numa sociedade profundamente desigual, esperar algo do Estado é quase uma questão de bom senso. José Murilo de Carvalho, no seu livro Cidadania no Brasil: o longo caminho (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001), faz uma análise primorosa da importância da presença estatal entre nós. Citando T. A. Marshall para explicar a evolução da cidadania na Inglaterra, Carvalho descreve três etapas de afirmação dos direitos na construção da cidadania: civis, políticos e sociais.

Direitos civis se expressam basicamente na liberdade, garantia de propriedade e igualdade perante as leis. Os políticos se referem à possibilidade de participação dos cidadãos na formação e exercício dos governos, participação essa consubstanciada basicamente através do voto. E os direitos sociais dizem respeito à prestação de serviços estatais nas áreas de saúde, educação, previdência social e na organização de uma sociedade que busque o desenvolvimento através da valorização do trabalho.

Pois bem, na Inglaterra, primeiro se deu o surgimento dos direitos civis, depois vieram os políticos e, finalmente, os sociais. No Brasil, os direitos sociais antecederam aos outros dois. E, neste processo, a participação estatal é fundamental, pois o Estado aparece como o grande “doador” de benefícios. No conceito Estado-Nação, o surgimento inicial dos direitos civis privilegia a ideia de Nação, de sociedade. Quando os direitos sociais antecedem os outros dois, a presença estatal é altamente predominante.

Isso impregna a sociedade de Estado. O cipoal de leis e regulamentos, a estrutura tributária sufocante, a participação exorbitante na economia, o excesso de documentos exigidos, tudo isso mostra que o Estado perpassa as relações sociais e está presente na vida dos brasileiros 24 horas por dia. No imaginário coletivo, ele é “bom”, pois “oferece” aquilo que ampla parcela dos brasileiros não consegue por vias próprias – saúde e educação, principalmente – e indispensável.

Essa presença excessiva está no DNA da formação da nossa sociedade e gera deformações que se relacionam com a percepção que as pessoas têm de ascensão social e do próprio capitalismo. Tom Jobim disse, certa vez, que no Brasil o sucesso é considerado uma ofensa pessoal. Se alguém consegue comprar um carro importado muito caro, a conquista é logo olhada com desconfiança e o raciocínio que a compra inspira é algo do tipo: “aí tem…”. Não existe, entre nós, a valorização do sucesso: ao invés de ser encarado como mérito, ele é associado à suspeição.

Um livro excepcional que disserta sobre os aspectos cotidianos da presença do Estado em nossas vidas é Capitalismo: modo de usar (Rio de Janeiro, Elsevier, 2015), de Fábio Giambiagi. O autor conta uma história, logo no início, que dá bem uma ideia da concepção anticapitalista. Um colega de trabalho, ao fechar suas gavetas e se espreguiçar por volta das 17 horas, depois de mais uma penosa jornada, proferiu a seguinte frase: “Faltam 17 anos, 5 meses e 4 dias para eu me aposentar”.

Ao invés do inquieto espírito “animal” do empreendedor, que quer criar, crescer e gerar riquezas, o que essa situação sugere é a apologia da acomodação. Trabalhar, nesse caso, parece ser um fardo, algo absolutamente desconfortável e até improdutivo. É o contrário do que se observa nos países capitalistas centrais, onde se estimula a competição e o mérito é recompensando. Aqui, temos uma típica cena de “repartição pública” no seu sentido mais pejorativamente estereotipado.

Giambiagi também aponta as “contribuições” da esquerda nessa homenagem desenfreada que se presta à atividade estatal no Brasil. O Datafolha, em suas amostras nacionais, separa os eleitores em PEA (População Economicamente Ativa) e não-PEA. É interessantíssimo notar a força dos candidatos com tendências estatizantes entre os eleitores não-PEA. Esses candidatos são lídimos representantes do atraso, defensores contumazes da regulamentação e do controle e críticos raivosos da livre iniciativa e tudo que a acompanha.

O período de crescimento econômico durante o governo Lula fez com que se acentuasse o preconceito contra o capitalismo. Para o autor, esses oito anos foram marcados pelo reforço do papel redentor do Estado. Diz Giambiagi: “Da crítica contundente ao processo de privatização, à exaltação retórica do papel do Estado, passando pela protelação das concessões na infraestrutura, pelo consumismo e pelo ataque subliminar à educação presente no discurso…, não houve baluarte de crescimento econômico de longo prazo que não tenha sido atacado naqueles anos” (pág. 6).

Temos, portanto, um longo caminho a percorrer. O governo Fernando Henrique Cardoso estabilizou a moeda e começou a reestruturação do Estado brasileiro¹. Foi chamado de neoliberal, entreguista, elitista e sua herança apelidada de maldita. O governo Lula aumentou o tamanho do Estado, a regulamentação, quase faliu a Petrobrás, bloqueou concessões e sua sucessora, eleita exclusivamente pelo seu aval, jogou o País na maior crise econômica da nossa história. Lula é considerado pelos brasileiros nosso melhor presidente. Pelo jeito, o capitalismo vai ter que esperar sua vez…

 

 

¹Sobre os avanços no governo FHC, ver LamounierBolivar e FigueiredoRubens (orgs); A era FHC: um balanço, São Paulo, Editora de Cultura; 2002.

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