Existe vida inteligente no Brasil

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Existe vida inteligente no Brasil

O livro “O valor das ideias: debate em tempos turbulentos” (São Paulo; Companhia das Letras; 2019; 459 páginas), organizado pelos economistas Marcos Lisboa e Samuel Pessôa, é uma obra que foge totalmente à polarização entorpecedora que se estabeleceu na sociedade brasileira nos últimos anos. Trata-se de uma ode à argumentação e à racionalidade, sem as quais o conhecimento não avança, o raciocínio não flui e a verdade não aflora.

O debate no Brasil ficou muito rasteiro de uns tempos para cá. A direita acha que está certa porque é a direita e a esquerda acha que está certa porque é a esquerda. Não existe convergência possível. Para a esquerda, o outro lado não passa de um bando de trogloditas reacionários e fascistas. Para a direita, seus antagonistas são um amontoado de corruptos aproveitadores a serviço da destruição dos valores familiares e do capitalismo. Com esse espírito e essa disposição, é totalmente inviável qualquer tentativa de diálogo.

O livro é uma coletânea de discussões travadas pelos autores e gente como Ruy FaustoFernando HaddadMarcelo CoelhoCelso Rocha de Barros e Luiz Gonzaga Belluzzo, entre outros. Nenhum texto é inédito: os mais densos foram publicados na revista Piauí, Folha e blog do Ibre. A leitura como que nos transporta para o que parecem nos dias de hoje distantes lugares civilizados, nos quais a divergência não traz como conseqüência imediata a tentativa de se aniquilar o “inimigo” ou desqualificar a personalidade do opositor.

Uma discussão bastante interessante é a que abre o livro. Ela se dá entre o filósofo da USP Ruy Fausto e o economista Samuel Pessôa. O primeiro se impõe a tarefa de fazer uma proposta de reconstrução da esquerda. O primeiro passo é analisar os problemas do socialismo, mostrando como um projeto tão nobre e generoso – ancorado, segundo Fausto, “na igualdade, liberdade, solidariedade, respeito mútuo entre cidadãos e governantes, justiça social” (pg. 44) – teve como resultado experiências tão desoladoras.

O primeiro problema, o totalitarismo, dispensa maiores explicações. A experiência stalinista fala por si só. Além do totalitarismo, duas outras “patologias” teriam desvirtuado os propósitos da esquerda: o adesismo e o populismo. O adesismo teria existido no Brasil, com o grupo que cercava Fernando Henrique Cardoso tendo migrado de uma posição de centro-esquerda para a centro-direita. Essa interpretação é exagerada e supõe que haveria um descolamento notável entre as práticas petistas e tucanas. Essa visão se choca frontalmente com os argumentos desenvolvidos por Lisboa e Pessôa, que demonstram, com profusão de dados, a existência de uma continuidade nas políticas econômica e sociais levadas a efeito nos governos FHC e no primeiro mandato de Lula.

O terceiro problema é o populismo. Fausto não foge à luta e enumera aqueles que seriam as três características definidoras do fenômeno: a existência de uma liderança carismática e autoritária; uma política que aparenta unir o interesse de classes mais ou menos antagônicas; e o que Fausto chama de “um certo laxismo na administração da riqueza pública” (pg. 50). O filósofo se esquiva de classificar o período petista como populista, aferrando-se à inexistência do componente autoritário (o que é discutível: controle social da mídia, aparelhamento do Estado, uso do dinheiro público para financiar ONGs de esquerda não são exatamente práticas democráticas…).

Depois de dizer o que o socialismo não deveria ser, Fausto passa a delinear um programa para a esquerda, tendo como primeiro ponto o respeito à democracia, mesmo que seja o sistema “democrático-representativo”. Escreve o filósofo: “mesmo se deformada, a democracia tem como princípio a igualdade, e nesse sentido ela é virtualmente – e, sob certas condições, efetivamente – uma força de oposição ao capitalismo, já que o princípio deste é a desigualdade” (pg. 78). O segundo ponto é ser intransigentemente anticapitalista, buscando “neutralizar o grande capital”.

Em seu contraponto, Pessôa introduz elementos racionais e econométricos na discussão, algo que a esquerda reiteradamente desdenha. Para ficar apenas num tópico, o economista analisa a afirmação do filósofo Fausto, segundo a qual a luta da esquerda deveria começar com o objetivo mais imediato de garantir “a sobrevivência ou a reimplantação de um Estado de bem-estar social – modelo de ação estatal que está ameaçada em toda parte, quando não foi desmontado” (pag. 93).

Pessôa rebate com números e prova que a ideia de desmonte do Estado de bem-estar social não encontra o mínimo amparo nos fatos. Entre os países da OCDE, a carga tributária, de onde saem os recursos para as políticas sociais, cresceu ininterruptamente desde meados da década de 1960, o mesmo acontecendo nas economias asiáticas. O gasto social mais do que dobrou entre 1980 e 2013, passando do equivalente a U$ 3.452 para U$ 8.839 (a preços de 2010). O capitalismo democrático, portanto, tem melhorado a vida das pessoas.

Demonstrando que não seleciona indicadores, Pessôa reconhece que, de 1980 para cá, houve aumento das desigualdades no países mais desenvolvidos, com elevação da renda apropriada pelos 10% mais ricos. Mas a redução da pobreza, no período pejorativamente taxado de neoliberal, foi monumental. De 1970 a 2000, o número de pessoas vivendo com U$ 2 por dia despencou de 1,070 bilhão (31% da população) para 620 milhões (13%). Essa é apenas uma pequena amostra da qualidade da argumentação. A verdade é que “O valor das ideias” é um sopro de esperança no tenebroso submundo dos debates no qual o Brasil se enveredou.

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