

Philippe Schmitter é um cientista político de altíssima estirpe. Antecede a safra dos estudiosos que usam modelos matemáticos para procurar entender as motivações humanas. Alinha-se ao lado dos que valorizam o processo ao invés de registrar as regularidades. Acompanhado pelo argentino Guillermo O’Donnel, é um dos teóricos mais festejados da teoria das transições.
O legado da dupla não pode ser negligenciado. Referindo-se ao período de expressivas transformações políticas que impactaram grande número de países na década de 80 do século passado, Schmitter e O’Donnel explicavam que havia dois tipos de transição do regime autoritário.
A transição “por colapso”, como a expressão sugere, acontecia quando um sistema político simplesmente ruía. Era a débâcle total: expulsos os que mandavam, era imprevisível o que vinha depois. Naquela época, foram os casos de Portugal e Grécia, para ficar em dois exemplos.
Já a transição “transada”, cujo caso emblemático é o Brasil daquela época, seria a transposição comportamental da ideia do “jeitinho” aplicada à atividade política. Nesse caso, a elite política vislumbra a possibilidade de problemas graves no futuro imediato e antecipa providências para, coordenada com a assim chamada sociedade civil, articular a formação do novo governo.
Essa taxonomia ficou famosa. Agora, Schmitter analisa uma nova transição, mais profunda e na superfície traiçoeiramente imperceptível, que nos estimula a refletir sobre os caminhos – ou descaminhos – da democracia.
Basicamente, ele defende que as pessoas estão se sentindo cada vez menos pertinentes a organizações mais inclusivas , mas a culpa não é, como se alardeia, dos políticos e dos partidos. Existe um declínio da sociedade civil entendida como uma unidade de convergência de opiniões e valores.
Hoje, a opinião pública não se explica mais através da alardeada dicotomia dos grandes conglomerados. Não empolga as massas a contraposição entre burgueses e proletários, liberais e conservadores, coxinhas e mortadelas, republicanos e democráticos. A coisa mudou.
Existem, é fato, as grandes manifestações populares, frutos de mega acontecimentos políticos que agregam a sociedade, produtos da monumental capacidade de mobilização das redes sociais, em situações como o impeachment. Mas são aglutinações ocasionais, esporádicas, fugazes. Ninguém protesta todo dia, nenhum ser humano é rebelde de segunda a sexta, não há jovem que durma e acorde, anos a fio, com vontade de empunhar bandeira na avenida.
O problema dessas manifestações performáticas, diz Schmitter, é a consequência. Elas deixam um legado organizacional com o qual é possível negociar pelas instâncias institucionais. Aquilo que é explosão, fica como um recado. Mas não traz embutida a semente de um caminho a ser construído.
No dia a dia, cidadãos se expressam e se associam através de causas mais próximas ao seu comportamento, desejo ou ambição. São ”bicicleteiros”, “sem teto”, gays e variações, ecológicos, estudantes revoltados, motoqueiros, torcidas organizadas, evangélicos. Não precisaremos esperar muito e teremos os dissidentes de cada um desses grupos, algo como “bicicleteiro da subida sem semáforo do lado direito”.
Nessa conjuntura, as organizações que visam aglutinar interesses mais gerais precisam se reinventar. Entender, repaginar e voltar a apontar caminhos. Ou ficarão reféns de personalidades performáticas. Que impressionam mais que lideram, desagregam dando a impressão que unificam e anestesiam parecendo mobilizar.