

No livro Liberais e antiliberais – A luta ideológica do nosso tempo (São Paulo, Companhia das Letras, 2016), Bolívar Lamounier faz uma reflexão interessante e extremamente atual sobre aquilo que chama de “as duas faces da democracia”. Segundo o autor, essa forma de organização política pode ser entendida como tendo duas “almas filosóficas”, fincadas teoricamente em dois clássicos da Teoria Política: Rousseau e Montesquieu.
A primeira face diz respeito à soberania popular. Isso quer dizer que, regularmente, é necessário haver eleições limpas e livres, que legitimem a escolha daqueles que exercerão o poder e elevem o indivíduo ao posto de cidadão. É estabelecido um mecanismo através do qual são selecionados representantes que operarão na arena política com o objetivo de buscar o bem comum. Trata-se da primeira metade do célebre conceito segundo o qual “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”. É o Contrato Social de Rousseau.
A segunda diz respeito ao exercício mesmo do poder. É a segunda parte do enunciado clássico: “e em seu nome será exercido”. Uma vez investidos em seus cargos, o sistema precisa garantir que o poder conquistado seja operado em consonância com as vontades expressas nas urnas e de acordo com as leis. Afinal, as escolhas se dão a partir de um cardápio de propostas que os candidatos apresentam no período eleitoral. É fundamental que haja conexão entre as propostas e as políticas efetivamente praticadas.
Para o bom funcionamento da democracia, é necessária a separação dos Poderes e a existência de um sistema de pesos e contrapesos que circunscrevam o exercício do poder. Lamounier lembra a contribuição de Tocqueville (uma espécie de Gramsci do liberalismo), que “destaca o jogo de pressões competitivas que emerge da própria sociedade, materializando-se na atuação de associações voluntárias, de grupos de interesse, da imprensa e, em última análise, do setor econômico privado” (pg. 89). Eu acrescentaria: e, de forma cada vez mais importante, das redes sociais e privadas, como o Whatsapp.
Não é preciso ir muito longe para verificar o quanto de dificuldade cada uma dessas duas “metades” da democracia encerra. A expressão da vontade popular envolve um arsenal de providências práticas e a mediação de uma série de instituições que tornam a tarefa extremamente complexa. Há equilíbrio nas condições iniciais da disputa? Os partidos têm inserção social? Como são distribuídas as legendas? As regras para a disputa são justas? O sistema político está suficientemente protegido das injunções econômicas durante a eleição? A Justiça Eleitoral age com imparcialidade? O candidato está falando a verdade a seus eleitores?
No Brasil, os analistas de conjuntura, geralmente jornalistas e particularmente no momento histórico que estamos vivendo, preferem focar seus comentários, que mais se parecem diatribes, naquilo que o processo tem de frágil ou ineficaz. Nesse sentido, os partidos são débeis ao extremo e dominados por uma oligarquia ultrapassada, o poder econômico impera, as eleições são marcadas pela corrupção, a urna eletrônica não é confiável e por aí vai. É como se tudo estivesse errado o tempo todo. Embora parte dessas interpretações possam guardar, em algum grau, alguma proximidade com os fatos, é mais do que evidente que focar apenas o negativo distorce a realidade e inviabiliza o reconhecimento dos avanços que, de uma forma ou de outra, efetivamente acontecem.
A segunda metade da democracia, ou seja, o funcionamento do sistema após as eleições, por assim dizer, é também muito problemático e, é possível afirmar, ainda mais complexo do que o momento da fundação eleitoral. Para usar uma imagem alegórica, eleger constituintes é mais simples do que elaborar uma Constituição. Um governo não se efetiva através de um encadeamento sucessivo de algorítimos que automaticamente produz o resultado que se espera seja decorrente da eleição. A política é produto da ação humana exercida de forma a influenciar a coletividade. É óbvio que não é algo comezinho.
Tome-se, por exemplo, uma providência banal: a votação de uma lei de iniciativa parlamentar (deputado) no Congresso Nacional. Simplificando ao máximo: o projeto de lei deve passar pela Comissão de Constituição e Justiça e pela Comissão Temática. Tem que entrar na fila, ser pautado pela presidência da Casa, ser aprovado por maioria pelo plenário. Depois disso, vai para o Senado aprovar. Se não tiver modificações, vai para sanção ou veto do presidente da República. Se o presidente vetar, a Câmara pode derrubar o veto. Tudo isso permeado pela ação dos Grupos de interesses, pressões e contrapressões, cobertura da mídia, denúncias, chuva de fake news nas redes sociais etc.
A ideia generosa da democracia liberal não cria, por si só, garantias de seu funcionamento. A esquerda, a direita e os ressentidos mal humorados que vivem de apontar problemas na democracia brasileira se esquecem desse caráter de construção e de aperfeiçoamento próprio desse tipo de regime político. Nas palavras de Lamounier, “muitos estudiosos se aferram a uma visão a-histórica, como se a democracia pudesse nascer pronta, da noite para o dia, daí se seguindo que para avaliá-la basta uma contraposição simples do ideal ao historicamente existente” (pg 94).
Não é por acaso que, em muitos lugares, a aderência à democracia como forma de governo anda de mãos dadas com a eficiência dos governos de ocasião. Como o Estado moderno apresenta cada vez menos condições de resolver os problemas de sociedades que se modificam a uma velocidade jamais vista, a credibilidade da democracia e das instituições democráticas diminui em muitos países, abrindo possibilidade para a emergência do populismo tosco ou de um autoritarismo puro e simples. É preciso resgatar as duas almas da democracia, entendê-la em toda sua amplitude e ajudar a consolidar esse regime que, de longe, é o mais sólido teoricamente em seus princípios, adotado nos países com maior grau de estabilidade política e ostentam os melhores indicadores sociais do mundo.