A “desconsolidação” democrática

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A “desconsolidação” democrática

A democracia está em baixa no mundo? A resposta é sim, se levarmos em conta a adesão dos eleitores aos valores democráticos que são captados nos levantamentos de opinião pública. Na América Latina, pesquisas regulares têm sido realizadas desde meados da década de 1990 pelo Latinobarômetro e indicam uma consistente perda de prestígio dos princípios do sistema democrático.

Se somarmos os latinoamericanos que acham que “em algumas circunstâncias um governo autoritário pode ser preferível a um democrático” com aqueles que acreditam que “tanto faz um regime autoritário ou democrático”, atingiremos e expressivo patamar de 38%. Se acrescentarmos os 8% de eleitores que não quiseram ou não souberam responder, gente que não está nem aí, chegaremos a 46%, quase metade do contingente eleitoral. Já os que acham que “a democracia é preferível a qualquer forma de governo”, que chegaram a somar 63% em 1997, atingiram 54% em 2016.

Comparando o indicador de apoio à democracia país por país, de 2016 em relação a 2015, verifica-se o crescimento em cinco países: Panamá (expressivo incremento de 11 pontos percentuais), Paraguai, Costa Rica, Argentina e Honduras (estes com elevações modestas). Em nove, o apoio diminuiu de forma significativa do ponto de vista estatístico: três apresentam uma redução leve e seis queda acentuada.

O Brasil está péssimo na foto. Como é possível aferir no gráfico abaixo, nos situamos em penúltimo lugar no que se refere ao apoio da população à democracia, tecnicamente empatados com a Guatemala. Como se não bastasse, de 2015 para 2016 o número de democratas entre os brasileiros despencou 22 pontos percentuais, recorde absoluto na região, certamente em função do monumental esquema de corrupção que veio a público envolvendo algumas personalidades do mais alto escalão da República.

 

Esse desprezo pela democracia aparece, evidentemente, nos índices que avaliam a credibilidade das instituições. O Ibope publica, com regularidade, seu conhecido Indicador de Confiança Social. Dados recentes mostram que instituições fundamentais para o funcionamento do regime democrático estão em seus piores momentos em termos de confiabilidade da opinião pública. De 2009 para 2015, o número de brasileiros que confia nas eleições e no sistema eleitoral caiu de 49 para 33%; no Congresso Nacional, de 35 para 22%; e nos partidos políticos, de 31 para 17%. Nessa seara, apenas o Judiciário conseguiu evitar uma queda maior nos seus índices de credibilidade, mostrando um discreto recuo de 52% para 48% no período considerado.

Mas não é só pelos nossos lados que essa falta de apreço pela democracia avança. Tome-se o exemplo dos Estados Unidos: lá, a grande maioria dos cidadãos acredita que o país está “caminhando na direção errada”. Assim como aqui, a desconfiança nas instituições aumenta. Numa pesquisa de 2016, 46% dos americanos disseram que “nunca tiveram” ou que “perderam a fé na democracia americana”. Há, ainda, um fator particularmente preocupante: o índice de adesão à democracia diminui drasticamente à medida que se transita dos eleitores mais velhos para os mais jovens. Entre os americanos que nasceram antes da Segunda Guerra Mundial, 72% afirmam ser “fundamental” viver em uma democracia. Na geração Y, aqueles que vieram ao mundo a partir de 1980, esse número cai para 30%.

No ensaio Os sinais da desconsolidação (1), Robert Stefan Foa (Universidade de Melbourne) e Yascha Monk (Harvard) chamam a atenção para o aumento global da quantidade de cidadãos que desejam um líder forte “que não precise se preocupar com deputados, senadores e eleições”. O paradoxal é que, ao mesmo tempo em que a adesão à democracia e a credibilidade nas instituições diminuem, as pessoas esperam cada vez mais do governo. Governo forte.

O número de eleitores que concordam com um líder forte e desprezam a necessidade de eleições, em pesquisas realizadas na rodada entre 2010 e 2014 pela European Values Survey e pela World Values Survey, é superior a 50% em uma vasta gama de países. Os apoios mais marcantes a essa linha ocorrem na Rússia, Romênia, Índia, Ucrânia e Taiwan (acima ou próximos dos 70%). Entre os latino-americanos, Peru, México, Colômbia e Argentina. Não há referências ao Brasil, mas dado o azedume de nossa opinião pública, a falta de credibilidade das instituições políticas e a baixa adesão à democracia em nosso país, tudo leva a crer que o contingente seria bastante expressivo.

Democracias existem onde os cidadãos as respeitam e lutam para que existam. Na década de 1980, os estudos hoje clássicos de Guilhermo O´Donnel, Alfred Stepan e Laurence Whitehead analisavam de que maneira uma série de países, com o apoio decisivo da assim chamada sociedade civil, transitavam do autoritarismo para a democracia. Depois, estudaram como as democracias se consolidavam, num processo que parecia irreversível, também alinhado com os desejos da opinião pública. Sabemos o que acontece quando, num sistema fechado, uma sociedade democrática quer um regime democrático. O que acontecerá quando, numa democracia, um regime democrático se depara com uma sociedade não democrática?

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