O Sobrenatural de Almeida

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O Sobrenatural de Almeida

Economista Rubens Figueiredo escreve sobre “A vida por escrito – Ciência e arte da biografia”, de Ruy Castro

Rubens Figueiredo, cientista político e colaborador do Espaço Democrático

Edição: Scriptum

Foi Euclides de Cunha quem escreveu que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Se fosse transferir a ideia do sertanejo para a característica de um biógrafo, diria que o biógrafo é antes de tudo um obstinado perfeccionista. É essa a sensação que fica depois ler A vida por escrito – Ciência e arte da biografia, de Ruy Castro (São Paulo, Companhia das Letras, 2022). O livro bem poderia ser descrito como o biógrafo fazendo a biografia das suas biografias. São pouco menos de 200 páginas que vão muito além de um manual, transmudando-se num agradável bate-papo entre autor e leitor.

Castro vai dando as dicas de como fazer uma biografia digna desse nome, entremeando o texto com deliciosas passagens de suas epopeias ao escrever obras fascinantes como as biografias de Nelson Rodrigues, Carmen Miranda e Garrincha, ou excepcionais livros que época como Metrópole à Beira Mar (sobre o Rio de Janeiro dos anos 20), Chega de saudade (uma história da Bossa Nova), Ela é carioca (uma ode a Ipanema) e A noite do meu bem (sobre o samba canção). Logo de saída, explica que biografia não é romance, que deve ser evitado a qualquer custo, não é perfil, não é livro-reportagem nem ensaio biográfico.

Tudo começa, é óbvio, com a definição do biografado. Ruy Castro não faz livros sobre pessoas que estão vivas. Conta que Dercy Gonçalves que telefonou convidando-o a escrever sua biografia, uma vida que decididamente mereceria ser contada. Mas tem um risco, pois a vida do biografado ainda não terminou. Um excelente exemplo é a história de Woody Allen, que fez a biografia “definitiva” dele, escrita por Eric Lax, virar papel para reciclagem. Castro pondera: no caso de Dercy, que nunca parou quieta, fazer uma biografia em vida era perigosíssimo. Depois de pronto o livro, ela “poderia ter pulado de asa delta da Pedra da Gávea, quebrado a banca no bingo clandestino de Copacabana a que ia todas as noites ou se casado com dom Helder Camara. E nada disso teria saído no livro” (pg 43).

O biografado deve ter tido uma vida agitada, com altos e baixos. O ideal é ir além de ter sido celebridade, caminhando as vias do sucesso e da fama, o que, convenhamos, está muito longe de ser pouco. Deve ter passado por problemas familiares, conjugais, financeiros, policiais, de saúde. Alguém que, como na genial música de Paulo Vanzolini, “reconhece a queda e não desanima, levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”. Para Ruy Castro, a vida de Garrincha, Carmen Miranda e Nelson Rodrigues tinham a maioria, senão todos, esses ingredientes.

Também deve haver, na sociedade, interesse pelo personagem. O apelo comercial é importante, pois a editora banca anos de pesquisa do biógrafo até que a obra esteja nas prateleiras das livrarias. No caso de Garrincha, havia a ideia de que quem gostava de livro não gostava de futebol e vice-versa. Além disso, dificilmente um livro sobre Garrincha empolgaria o público feminino – o que significaria uma perda de mais de 50% dos consumidores em potencial. Nenhum livro sobre futebol publicado no Brasil vendera, até então, mais de 2 mil exemplares – e olha que estamos falando de autores como Mário Filho, Armando Nogueira e João Saldanha. Pois bem: a biografia de Garrincha foi o livro do autor que mais vendeu, 94 mil exemplares até julho de 2022. Com problemas judiciais e tudo.

O último capítulo do livro, que fala sobre a sorte do biógrafo, é de arrepiar. Quem faz da profissão a razão de sua vida e é apaixonadamente dedicado às empreitadas que se impõe cria conexões que nos faz apostar na força divina. “Sem sorte não se chupa nem um Chicabon. Você pode engasgar com o palito ou ser atropelado pela carrocinha”, disse Nelson Rodrigues. O técnico Bernardinho dizia que quanto mais seu time treinava, mais sorte tinha. Os episódios da descoberta do show de Elza Soares no Automóvel Clube, do encontro com o filho do cacique dos fulniôs (antepassados de Garrincha) e com o neto do ilustrador J. Carlos são de sentar no chão e ficar olhando o firmamento. Deve ser o tal do Sobrenatural de Almeida, personagem de Nelson Rodrigues, especula Ruy Castro.

 

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