Sensor desregulado

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Sensor desregulado

Entramos no estranho túnel no qual é necessário “concordar” ou “discordar” do conteúdo dos versos em vez de admirá-lo, escreve Rubens Figueiredo

Alguns carros mais modernos têm sensores de distância que fazem ruídos quando o automóvel está muito próximo de algum obstáculo, que pode ser outro carro, um vendedor de chicletes, motos ou a parede de uma garagem. O acessório é muito útil, mas começa a ficar insuportável quando fica desregulado e passa a registrar qualquer objeto que está muito longe do lugar no qual começaria a oferecer perigo. O apetrecho não para mais de apitar e ficamos com a sensação de que estamos sempre na iminência de uma colisão. No lugar de segurança e tranquilidade, sobressaltos contínuos.

Essa imagem parece adequada para ilustrar o que está acontecendo na sociedade brasileira. O que estamos assistindo são coisas absolutamente banais se transformando num perigo ou, pior, em algo inaceitável. Qualquer manifestação artística – música, peça de teatro, filme etc – é concebida no seu respectivo momento histórico e reflete as relações sociais, a cultura e o contexto da época. Preservar seu caráter original é importantíssimo, do ponto de vista sociológico e antropológico, para que possamos entender, com mais profundidade, o que acontecia no momento de sua concepção.

Fico sabendo que estão sendo lançados no Reino Unido novas edições dos livros de James Bond para comemorar os 70 anos daquele que é, sem dúvida nenhuma, o Pelé dos agentes secretos. Os livros trazem a advertência utilíssima de que foram escritos em sua época – seria impressionante se fosse o contrário. Por isso, podem conter palavras ou descrições de comportamentos considerados “ofensivos” aos leitores modernos. A substituição desses termos e atitudes por outros mais, digamos, “adequados”, subverte a intenção original do autor e deixará o leitor a ver navios e sendo transportado para um futuro que se imagina politicamente correto.

Não faz muito tempo, o cantor e compositor Chico Buarque – ele mesmo, reconhecido como o artista que mais entende a alma da mulher – declarou que não cantaria mais a maravilhosa canção Com açúcar com afeto porque ela teria sido considerada de conteúdo machista. Trata-se da história de um sujeito que aprontava as suas durante a noite. Entenda-se por “aprontar”: puxar assunto discutindo futebol, olhar as saias das moças e, pasme, cantar um samba na caixinha com um novo amigo.

Esse ser abjeto pede perdão ao chegar em casa. Vamos combinar: um cidadão que ao entrar na sala mais para lá do que pra cá, “maltrapilho e maltratado”, diz humildemente para sua mulher “não ficar sentida” porque vai “mudar de vida” para “agradar seu coração” não chega a ser, exatamente, um facínora. Dizia a companheira no último verso da obra prima: “logo vou esquentar seu prato, dou um beijo em seu retrato e abro meus braços pra você”. Tudo isso por livre e espontânea vontade. É muito pouco para evocar a Lei Maria da Penha.

Entramos no estranho túnel no qual é necessário “concordar” ou “discordar” do conteúdo dos versos em vez de admirá-lo. O título de um dos livros de Agatha Christie, que era O caso dos dez negrinhos, mudou para E não sobrou nenhum. Daqui a pouco não poderemos mais cantar que fulano “é Flamengo e tem uma nega chamada Teresa” porque o homem não é dono de mulher (e não é mesmo) e “nega” é depreciativo. Vai ficando tudo muito chato. Uma vez perguntaram a Freud – esse mesmo que falava mal das mães – se o charuto que ele costumava fumar não seria um símbolo fálico, segundo sua própria teoria. Ele respondeu: “Às vezes um charuto é apenas um charuto”.

 

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